quarta-feira, 29 de maio de 2013

A CURIMBA DO MALANDRO


 
Há certos eventos que jamais se repetirão. Não podem ser reproduzidos nem como representação dramática, pois perderiam o caráter único, transformador, epifânico,  potencializador da vida. Exemplifico.
 
É madrugada do dia 11 de fevereiro e a Portela se prepara para entrar na avenida. O enredo contará a história do bairro de Madureira. A bateria está vestida como Zé Pelintra, o malandro seminal. A rainha dos ritmistas, Patrícia Nery, vem de Maria Padilha. As fantasias, evidentemente, fazem referência ao Mercadão de Madureira e suas inúmeras lojas de artigos religiosos ligados ao candomblé e a umbanda.
 
Desde o ensaio geral da escola, por alguns recados mandados pelo próprio malandro e pela Padilha, a bateria sabia que deveria pedir licença a Seu Zé antes de iniciar o desfile. Acontece, então, o momento único. As caixas, repiques, tamborins, surdos e agogôs param de tocar. Os atabaques começam a curimba e abre-se um corredor. A rainha de bateria / Maria Padilha, inicia sua dança sensual, desprovida de pecados, sacralizadora do profano e profanizadora do sagrado. Sem culpas. Os diretores de bateria bailam no corredor com a ginga sinuosa, sincopada, festeira e alforriada de Seu Zé. A bateria canta, o público canta e a madrugada canta o ponto do malandro divino, o Zé das Alagoas, o do balanço da canoa.
 
Contemplado o malandro, a bateria retoma o ritmo do samba e a Portela se prepara para entrar na avenida. Gilsinho, o puxador do samba, vez por outra assombrará a Sapucaí com a gargalhada vital do Homem da Rua. Os tambores portelenses sustentarão o samba - para mim o melhor do ano - e a bateria sairá consagrada pelo juri oficial e pelas premiações paralelas como a melhor dos desfiles. O malandro gostou da festa e bateu tambor pelas mãos e baquetas de cada um dos ritmistas.
 
Aquela curimba portelense conseguiu, em menos de cinco minutos, sintetizar o que eu tento escrever há tempos, sempre de forma precária, sobre o perfil civilizador peculiar da nossa cidade. Em um texto de antanhos, ao tentar expressar que civilização é essa, escrevi mais ou menos o seguinte:
 
Brado louvores e toco atabaques para festejar a civilização. Sim, a civilização que João Candido, Zé Pelintra, Pixinguinha, Paulo da Portela, Cunhambebe, Cartola, Noel Rosa, Bide, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, Tia Ciata, Meia Noite, Madame Satã, Lima Barreto, Paula Brito, Marques Rebelo, Manduca da Praia, Silas, Anescar, Dona Fia, Fio Maravilha, Leônidas da Silva, Di Cavalcanti, os judeus da Praça Onze, a pomba gira cigana, a escrava Anastácia, o Cristo de Porto das Caixas, o Zé das Couves, o vendedor de mate, o apontador do bicho, o professor, o aluno, o gari, os líderes anarquistas da greve de 1919, a Banda do Corpo de Bombeiros, a torcida do Flamengo, o pó-de-arroz, a cachorrada, a nau do Almirante, o Bafo da Onça, o Cacique de Ramos, o Domingo de Ramos, a festa da Penha, a festa na lage e a cerveja gelada, criaram nesse extremo ocidente. Com baixaria na sétima corda e uma sonora gargalhada no final.
 
Foi exatamente isso que aconteceu na avenida nesta madrugada recente de carnaval. A Portela, sétima colocada pelo julgamento oficial, não retornará no desfile das campeãs. Melhor assim. O momento único, epifânico, civilizador, festeiro, celebrador das alforrias do corpo, libertador da alma, encantado nos arrepiados do batuque, não podia mesmo ser repetido. É feito o desfile de 1988 da Vila Isabel, a festa da raça com a Kizomba. Naquele ano a Vila ganhou, mas um temporal impediu a realização do desfile das campeãs. Será assim com a curimba para Seu Zé e a Dona Padilha que a Portela realizou na entrada do Sambódromo. Festa de encantaria; Brasil redimido no fuzuê do tambor suburbano. Irrepetível.
 
É assim, meus camaradas, que a gente reinventa a vida, zomba do pecado e transforma o corpo em totem. Na ginga do malandro da Portela, no balanço dos ombros da Padilha, o silêncio é preenchido e a bateria toca na cadência do samba. Ele, o samba, essa nossa gargalhada zombeteira que alumia o mundo.
 


 
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